Esta semana é de celebração. A NEWSLETTER Conversas com o Medo completa um ano! A primeira publicação, ganhou vida a 17 de Outubro de 2021. Hoje, estamos na 52. E eu tenho 50 anos e 2 meses 😉
O que escrevo aqui, faz parte da publicação desta semana da Newsletter. Decidi partilhar também consigo por esta via, depois do feedback fantástico que obtive dos meus subscritores.
No dia 16 de Outubro, completei o Ultra Trail Estrelaçor de 50 Km, em jeito de comemorar este meio século de vida. Trouxe para esta prova o significado destes números e acabei por encontrar outros que quero partilhar consigo.
Foi na parte que mais me custou da prova, que fiz uma analogia entre as suas 5 etapas e cada uma das décadas da minha vida. A organização atribuiu a cada etapa graus de dificuldade que curiosamente, coincidem com a minha experiência pelas diferentes décadas que vivi.
PERFIL E ALTIMETRIA DO ULTRA TRAIL ESTRELAÇOR
1ª etapa – grau de dificuldade: média – dos 0 aos 10
A primeira etapa com 10 km, ligou as Penhas da Saúde à Torre – o ponto mais alto de Portugal continental. Passagem pelo Lago do Viriato nos primeiros km, a Albufeira de Covão do Ferro e a sensação constante de que estava a pisar as nuvens. Em alguns momentos, enquanto me deslumbrava a cada passagem com esta paisagem de cortar a respiração, imaginava-me a ser “engolida” pelas nuvens que me iriam atingir em forma de nevoeiro. Mas quando olhava para trás, o que se apresentou como uma massa densa e branca a inundar os desfiladeiros, logo se dissipava dando origem a umas manchas que mais pareciam fumo. Assim foi a minha infância. Etapa de dificuldade média – pelos desafios previsíveis de descobrir o mundo pela primeira vez, com monstros e fantasmas que se revelaram inofensivos e com muito, mas mesmo muito deslumbramento com as revelações. Acho que fui bem preparada para a próxima etapa. A mais espetacular desta prova.
2ª etapa – grau de dificuldade: elevada – dos 10 aos 21
Tudo aconteceu durante esta etapa. Uma das mais fascinantes de todas as imersões na natureza que já tive até hoje. Do deslumbramento constante com cada mudança de paisagem, ao Vale glaciar do Covão da Ametade, à passagem incrível por lagoas estacionadas no coração da serra, a natureza abraçou-nos e envolveu-nos em todo o seu esplendor e rudeza, sem filtros, cerimónias ou cuidado. Este ficou do nosso lado. Nas descidas vertiginosas da montanha, com passagens perigosas e impróprias para os mais fracos de coração, a implorar precaução e a recordar a cada momento que “o seguro morreu de velho”. Foi seguramente a parte mais divertida e espetacular de toda a prova. Fase de ultrapassar obstáculos, aprendizagem, muita curiosidade, sentir o prazer de aprender o medo como um companheiro e continuar. Sempre. Até ao próximo desafio. Assim foi esta fase da minha vida. Das maiores descobertas e riscos, que determinaram na realidade a preparação para as seguintes.
3ª etapa – grau de dificuldade: fácil – dos 21 aos 30
Esta etapa foi a correr e passou a correr. Uma espécie de sprint para a etapa seguinte, em intensidade e velocidade máxima, ignorando as pedras do caminho e com o olho no destino – Manteigas. Sem obstáculos e com o caminho aberto para o que se seguia. Assim senti esta fase da minha vida. Um sprint, com umas conquistas atrás das outras, sem nunca perder a velocidade ou foco no destino. A idade e neste caso, a fase da prova, também possibilitou essa intensidade.
4ª etapa – grau de dificuldade: difícil – dos 30 aos 41
Sempre a subir. Assim foi este troço, a sair de Manteigas para regressar à origem. Entrei na etapa com alívio. Estava farta de correr e precisava de um esforço diferente. Talvez mais exigente, a requerer mais foco, maturidade. Sem parar e com ritmo constante, assim subi a montanha.
Foi a etapa do nascimento dos meus filhos, do crescimento e solidez do trabalho. Etapa dura, mas sempre a subir. Olhei para trás várias vezes. A sentir o prazer da contemplação do caminho feito e orgulho pelas conquistas. O caminho ardido, ainda com cheiro a queimado. A esconder as belezas do que foi e a antecipar o que poderá vir a ser. Assim foi o trabalho com os problemas mais complexos junto das pessoas vulneráveis que ajudei. Cenários desoladores, o desespero a convidar a desistir. Numa das zonas mais queimadas, ainda com árvores altas, sinto na pele as gotas da chuva. Por momentos, silêncio total. Até ser quase desperta pelo som de um pica-pau. Foi mágico! Um daqueles momentos inesperados, em que no meio do sofrimento, mas sem questionar o esforço, conseguimos apreciar a beleza. E deslumbrar-nos! Descobrir diamantes no meio das cinzas, ajuda-me a continuar a acreditar no poder da regeneração.
5ª e última etapa – grau de dificuldade: médio – dos 41 aos 50
Abandono o último abastecimento com o impermeável vestido. No meio da montanha ardida, a serpentear por um estradão desolador de terra e pedras, continuo a subir. O cinzento do céu a fundir-se com o castanho, cinza e preto das pedras e zonas ardidas. Aumenta o vento e frio glaciar. Os bastões ajudam-me a manter o equilíbrio. A chuva decide ficar e o nevoeiro ameaça cair a qualquer momento. A Serra a mostrar a sua verdadeira natureza. Imprevisível, agreste, perigosa. E ainda assim, admiravelmente bela. Foi a etapa mais difícil. Continuar a subir apesar da exaustão, tudo no corpo a gritar para e eu a ignorar os sinais, com a ideia fixa: só paro quando cruzar a meta. Assim foram os últimos 10 anos. De muito esforço, exaustão e conquistas difíceis de celebrar pelo estado de desgaste.
Foi esta a etapa de maior reflexão. Que percebi o quanto esta prova representa as décadas da minha vida. E foi aqui que realizei que tenho 50 anos e posso fazer melhor. Com o que aprendi em cada momento. Continuar a escalar, a subir, mas reconhecer que há outras formas de chegar lá. Não é preciso ser sempre em esforço e a levar tudo até à exaustão, sem descanso e a pensar na etapa seguinte, antes mesmo de concluir a anterior. Foi preciso ser posta à prova das mais diferentes formas nesta etapa para perceber várias coisas:
– Aguento, sou capaz e ainda não descobri os limites. Mas as consequências são dolorosas.
– É possível continuar a arriscar “o impossível”. Aliás não teria piada de outra forma. Mas há maneiras mais construtivas de o fazer. No Estrelaçor, decidi andar durante a última etapa. Não tinha nada a perder ou a ganhar e iria cumprir na mesma com o meu objetivo. Sem rebentar e a criar as condições para uma melhor recuperação.
– Com os joelhos a latejar e as mãos congeladas, a menos de uma hora da chegada da noite, a sentir o vento glaciar e o efeito da chuva gelada nos ossos, vivi o que achava ser o pior dos meus pesadelos durante um trail. E não foi sobreviver. Mas estar vibrantemente viva! Foi sentir prazer e um certo orgulho em ser capaz. Em ir adaptando as estratégias de acordo com as dificuldades que surgiam. Com confiança e a certeza de que iria correr tudo bem. Com dúvidas? Sim, claro. Que me ajudaram a desenhar mentalmente alternativas de resposta em vez de bloquearem o pensamento.
Tive consequências na saúde mental do quanto estiquei a minha capacidade na última etapa da minha vida. Sabendo que não posso alterar o passado, também foi este que me ajudou a lidar com o presente. A ser mais resiliente e a lidar com a adversidade, não como se a vida fosse um sprint, mas com a serenidade das provas de endurance. Para no final, terminar com um sorriso nos lábios.
Cruzei a meta ao fim de 10h05 e entrei direto numa sala quente e seca, onde me esperavam com um prato quente de canja. Entreguei-me sofregamente a este prazer, até ser interrompida por uma voz no microfone a chamar pelo meu nome para receber um prémio! Eu?! Éramos só 16 mulheres em 82 atletas no ultra trail, e eu sabia que era a última no feminino a terminar. 2º lugar no escalão F50. Éramos só duas, claro 😉 Ainda assim soube bem ser aplaudida pelo meu marido que falhou a sua chamada ao pódio, porque estava à minha espera na manga da meta, e pelas pessoas da organização que nos acolheram com todo o carinho e atenção.
Apesar da sensação de conquista quando se termina, estamos muito vulneráveis. Vivo momentos de grande emoção quando me aproximo da manga da meta no final destas provas. É a descarga de tudo o que vivi e senti nas últimas 10h e o reconhecimento da superação. Nos seus extremos, também as emoções mais agradáveis como o êxtase, o entusiasmo, a euforia em momentos como este, abrem as portas à vulnerabilidade. Muitos atletas choram. Eu engoli as lágrimas antes de cruzar a linha da meta. E abri o caminho para o alívio. Por estar mais próximo do que nunca o momento de entrar no chuveiro e aquecer o corpo, agora dormente do frio.
Poucos dias depois, ainda estou a processar toda a experiência. Sei que vai demorar meses. E ainda bem. Porque continuo a aprender de cada vez que o faço, e a ampliar as minhas capacidades para lidar com a adversidade.
O que fiz durante este ultra trail, é um dos métodos mais profundos e valiosos da terapia pela aventura – a arte da generalização e transferência das aprendizagens. Estabelecer ligações entre a experiência aventura e a nossa vida. Atribuir significado a essas associações e transferir as aprendizagens, tornando assim o processo mais rico, intenso e transformador. Por isso é que o seu processamento se prolonga no tempo.
Desejo-lhe um excelente dia, onde quer que esteja!
Kátia Almeida
Fundadora da Beyond Fear
Psicóloga Clínica & Empreendedora Social
* Fotografia tirada por Duarte Lopes durante o Ultra Trail Estrelaçor
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