O que descrevo, aconteceu no Trail Curto do Vimeiro, na manhã de 12 de setembro de 2021. No convívio final e após 19 Km de muita luta, ouço com um misto de orgulho e embaraço outra mulher, militar de carreira, a elogiar a minha destreza nas descidas: “A menina dos totós fez aquelas descidas de tal maneira! Parabéns, admiro-lhe a coragem!”.
Senti orgulho porque no topo dos meus 49 anos, ainda me consigo sentir no pódio da bravura, coragem e destreza. Embaraço porque a regar este pódio, encontra-se um rio de medo, incerteza e insegurança. O medo durante a experiência, funcionou como impulsionador através das suas injeções de adrenalina; a incerteza, pela percepção dos riscos reais nos declives mais acentuados; insegurança, por saber que já fui capaz de mais, já caí muitas vezes (não sou assim tão boa) e há sempre alguém que eu conheço capaz de conquistar estes declives com muito mais destreza do que eu.
Isto soa-vos familiar? Minimizarmos quem somos perante a adversidade, ou quando alguém nos atribui talentos que recusamos assumir. Reduzirmo-nos, nem sempre ajuda ao crescimento.
Não reconhecer os nossos feitos à luz do reconhecimento e comentários dos outros pode até em última instância projetá-los para um patamar de insegurança e até mesmo de inferioridade. Porque o seu reconhecimento do nosso valor, assenta numa apreciação de si próprio. O mesmo processo que eu fiz quando tive como referência os outros, tão melhores do que eu.
A verdade é que se eu minimizo o elogio como se a minha suposta proeza nas descidas não tivesse sido nada de especial, coloco a percepção de falta de destreza dos outros num patamar de inferioridade, de desvalor.
“São mais de três décadas a praticar Orientação.” – resposta honesta que dei sobre o contexto onde desenvolvi estas capacidades. A explicação, conforta quem faz o comentário. Porque há uma razão. Que não tem a ver com sorte ou genética, mas sim treino, treino, treino.
Não são atributos adquiridos que nos fazem destacar em alguma coisa. Mas sim o trabalho e persistência ao longo de muito tempo, com intenção e propósito. Ou seja, está ao seu alcance, não é uma questão de privilégio.
Se aplicarmos este conceito à educação, percebemos os erros que cometemos quando perante alguma conquista, dizemos aos mais novos “És o maior!” ou pior ainda “És o melhor!”. Estas afirmações, passam a ideia de que ser o melhor ou o maior, é algo imutável, faz parte do pacote. Se conquistei alguma coisa neste caso, não é porque me esforcei, mas sim porque sou boa. Ou seja, a sorte tem um papel de destaque e eu posso crescer com a crença de que não preciso de me esforçar para alcançar o que quer que seja.
E se os outros forem efetivamente melhores do que eu? Não me espanta que tantas crianças e jovens desistam quando não são bem sucedidos ou quando são confrontados com esta dura realidade de que há efetivamente outros melhores do que eles.
E se em alternativa, usarmos “Parabéns! O teu esforço e empenho traduziram-se neste resultado!” Passamos a ideia de que para alcançarmos a excelência temos que trabalhar. Reconhecemos que o potencial, é como uma moldura pendurada na parede, estagnada no tempo se nada for feito no dia a dia para o transformar em talento. E este é dinâmico – pode melhorar, aumentar, mas também se pode perder.
Neste dia, a menina dos totós transmitiu à senhora militar que há formas de trabalhar essa destreza. No meu caso, tem sido através de uma vida na floresta, montanha e mar, a correr, andar, nadar e até a rastejar. Fora de trilhos e por meios adversos, dignos das mais experientes cabras de montanha. São igualmente décadas de muitas quedas, algumas lesões, medos sem conta e a crescente mestria na condução dos motores da adrenalina. Igualmente importante, tem sido o convívio com tantos outros tão melhores do que eu a mostrar-me caminhos e universos de possibilidades.
Por ísso, da próxima vez que te cruzares com uma menina dos totós, pergunta qual foi o caminho. Porque nenhum talento ou mestria na vida se alcança com mera aptidão, gosto, motivação ou potencial. É o treino, a persistência, a repetição e acima de tudo as infinitas falhas que nos ensinam a chegar lá.
No domingo, fui orgulhosamente a menina dos totós. Hoje, volto a ser a aprendiz que explora, estuda, aprende, treina e falha espetacularmente por tantos outros caminhos.
*Fotografia tirada por Pedro Carvalho durante o Vimeiro Trail Run 2021
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